terreiro Tumba Juçara

Candomblé Angola:

Uma Jornada Ancestral de Resistência e Recriação no Brasil

 O Candomblé, em suas diversas manifestações, é um testamento vivo da resiliência e capacidade de recriação cultural dos povos africanos que foram trazidos ao Brasil. Dentre as suas "nações", o Candomblé Banto, também conhecido como Candomblé de Congo-Angola ou simplesmente Candomblé de Angola, destaca-se por sua profunda história e particularidades, enraizadas na experiência dos escravos que falavam línguas como o quicongo, umbundo e, principalmente, quimbundo.

As Sementes da Angola no Brasil:

A Primeira Diáspora e a Recriação da Alteridade

 A chegada forçada de africanos ao Brasil marcou uma diáspora distinta daquela sofrida por outros povos, como os judeus. Enquanto os judeus puderam levar consigo seus aparatos materiais e se manter unidos como uma "tribo", os africanos escravizados eram impedidos de trazer objetos, instrumentos ou vestimentas que permitissem a expressão de sua subjetividade. Além disso, eram frequentemente provenientes de etnias distintas, por vezes rivais, e eram obrigados a passar por um batismo e se tornar "cristãos" antes mesmo da partida, impondo uma transformação cultural inicial.

A estratégia dos senhores brancos de misturar povos de diferentes etnias, visando evitar revoltas, paradoxalmente, gerou uma aproximação e coesão, levando à (re)construção de laços familiares entre os africanos no novo mundo. Assim, a recriação da alteridade na diáspora africana no Brasil ocorreu através de fragmentos de memórias e na mistura de tribos.

Nesse contexto, o Candomblé emergiu como um movimento cultural de resistência à condição de escravos e à imposição do pensamento ocidental, que buscava anular suas subjetividades. Os Terreiros de Candomblé transformaram-se em "quilombos urbanos", onde a religiosidade permitiu a construção de uma cosmovisão de organização social, possibilitando a expressão da subjetividade do indivíduo numa ordem lúdica.

O pensamento africano pressupõe que o ser humano não nasce pronto, e os rituais de passagem são cruciais para o desenvolvimento da alma. No ambiente hostil da colônia portuguesa, os povos africanos se agruparam, reconstruindo rituais que permitissem esse desenvolvimento de suas alteridades. Dada a mistura de tribos, incluindo por vezes indígenas brasileiros, eles se organizaram pela ordem de ancestralidade, onde o mais velho cuidava do mais novo, criando parentescos familiares de ordem espiritual. Essa fusão resultou em uma complexa rede de ancestrais e uma mestiçagem de cultos e ritos recriados no Brasil.

A mestiçagem no Candomblé não é vista como perda de identidade, mas como uma "potência criativa e subversiva", um "alargamento de saberes" que produz uma pluralidade, uma individualidade a partir do múltiplo, e não do uno. Um exemplo claro dessa mestiçagem é o uso de milho e pipoca em rituais, alimentos originários da América Central, demonstrando uma "impureza" e a integração de heranças invisíveis. O Candomblé criou um "Terreiro" – um grande "país mítico" – onde a multiplicidade de expressão da alteridade se tornou possível, sendo as "nações" (como Angola, Ketu, Jeje, Xamba, Efon, Ijexá) percebidas como "sotaques" (accents), ou seja, diferentes musicalidades gestuais.

Além do pertencimento à nação, existem parentescos metafísicos ligados a divindades ou elementos, formando "clãs míticos" e "famílias" (da Rua, do Ferro, da Caça, da Planta, da Terra, da Atmosfera, da Cobra, do Raio, do Vento, das Águas Doces, do Mar, da Lama, do Branco) que transcendem as fronteiras de casas-raiz e nações. A contribuição indígena também foi fundamental, especialmente no conhecimento da flora local e na substituição de ervas africanas por plantas brasileiras, herdando assim uma ancestralidade indígena.

O Nascimento da Angola no Brasil:

Primeiros Terreiros e Lideranças Fundadoras

 A história do Candomblé de Congo-Angola no Brasil, embora fortemente alicerçada na oralidade do povo-de-santo angoleiro, possui registros e figuras cruciais em sua formação. No final do século XIX, já havia uma presença organizada de Candomblé Bantu na Bahia, conforme indicado por relatos como o de Martiniano do Bonfim.

Uma parte da literatura inicial, como os escritos de Edison Carneiro, frequentemente confundia o Candomblé Bantu com o "candomblé de caboclo", caracterizando-o como uma mistura de práticas nagôs, ameríndias e católicas, e alegando que os bantos não possuíam mitologia ou deuses suficientes. No entanto, o próprio Carneiro, através de Martiniano, aponta a existência de antigos "candomblés de caboclo" desde o século XIX, como os de Naninha e Silvana, que eram, na verdade, legitimamente candomblês bantu.

Entre os terreiros pioneiros, destaca-se o Terreiro Tombenci, fundado por Roberto Barros Reis (Tata Quimbanda Quinunga), um escravo angolano, por volta de 1850. Este terreiro é considerado um dos mais antigos da Bahia.

Maria Neném:

A Matriarca do Candomblé Angola no Brasil

 A figura de Maria Genoveva do Bonfim, conhecida como Maria Neném (dijina Mameto Tuenda Unzambi), é central para a história do Candomblé Angola no Brasil. Nascida no Rio Grande do Sul, ela foi iniciada por Roberto Barros Reis e, após o falecimento dele, assumiu o comando do Terreiro Tombenci por volta de 1909. Ela faleceu em 1945.

Maria Neném é amplamente reconhecida como a "mãe do Angola" na Bahia, reafirmando seu papel fundamental na fundação de uma das principais vertentes do candomblé. Sua importância reside no fato de que de suas mãos se originaram duas raízes cruciais do Candomblé Bantu no Brasil:

Ela foi a iniciadora de Manuel Ciriáco de Jesus (Ludiamungongo), um dos mais prestigiados pais de santo bantu. Manuel Ciriáco, juntamente com Manuel Rodrigues do Nascimento (Cambambê), fundou o Terreiro Tumba Junçara em 1919. O Tumba Junçara, localizado em Acupe, Santo Amaro da Purificação, é um terreiro centenário e referência do culto Angola no Brasil, tombado pelo IPHAN em 2018.

Maria Neném também foi continuadora dos ritos de iniciação de Manuel Bernardino da Paixão, fundador do Bate-Folha. Bernardino, filho espiritual de Manuel de Nkossi, entregou-se aos cuidados de Maria Neném após o falecimento de seu próprio iniciador, tornando-se filho de santo dela.

Apesar de existirem outros terreiros antigos, como o Calabetã e o de Gregório Maqüende desde o século XIX, a importância de Maria Neném é inegável, pois de suas mãos se originaram essas duas importantes raízes do Candomblé Bantu no Brasil: Bate-Folha e Tumba Junçara. Sua personalidade forte e decidida é destacada em relatos, inclusive sobre sua resistência à perseguição policial de Pedro Gordilho.

Outras figuras históricas como Manuel de Nkossi e Roberto Barros Reis são lembrados como os únicos africanos presentes na constituição do Candomblé Bantu na Bahia, enquanto Maria Neném, Manuel Bernardino da Paixão e Manuel Ciriáco eram brasileiros, "bantu por adoção". Isso reflete a singularidade do Candomblé Bantu, que se estruturou pela "vontade de um grupo de descendentes de africanos em cultuar divindades com as quais só tiveram contato de segunda mão".

Inquices e Rituais:

O Coração do Candomblé Angola

 O Candomblé de Angola concentra seu culto nos Inquices, divindades que, embora associadas aos orixás do Candomblé Ketu, mantêm suas particularidades e arquétipos originários da África Central. Alguns dos principais inquices são:

  • Aluvaiá (ou Pambu Njila): da comunicação e do corpo humano, guardião da comunidade, dos caminhos, encruzilhadas e bifurcações. Sincretizado com Exu e, por vezes, com o diabo judaico-cristão. O conceito sagrado de encruzilhada, a passagem entre os dois mundos na cosmovisão banta, já existia na África e foi ressignificado no Brasil.
  • Angorô: do arco-íris e da fertilidade do solo.
  • Kabila: da caça, fatura e abundância.
  • Mutakulambô: caçador e protetor dos animais.
  • Katendê: das folhas, agricultura e ciência.
  • Nsumbu (ou Caviungo/Cafungê): senhor das palhas, das doenças, da saúde e da morte.
  • Dandalunda: das águas doces, fertilidade, fecundação, ouro, amor, beleza e riqueza.
  • Nkosi: da forja, do ferro, da tecnologia, agricultura, guerras e soldados.
  • Lembá: da procriação e da paz, pai de todos os inquices.
  • Matamba: dos ventos, raios, tempestades e fertilidade.
  • Nkaiala: rainha do mar, das águas salgadas, mãe de todos.
  • Kitembo: do tempo cronológico e mítico, atmosfera, tempestade e vento.
  • Nvunji: da inocência e protetor das crianças.
  • Nzazi Luango: dos trovões, relâmpagos e do equilíbrio do cosmo.

 Os rituais (jipangu) do Candomblé de Angola são diversos, abrangendo desde a limpeza espiritual (Maionga, Mujinga, Sakulupemba) e energização (Nkudia Mutue), até celebrações (Kukuana, Kizuá Dijina, Dizungu Kilume) e obrigações para os inquices (Kituminu), além de ritos fúnebres (Ntambi/Mukondo, Kufunda, Pangu ni Nvumbi). A hierarquia (kijingu) inclui cargos como Tata/Mameto ria inquice (sacerdote/sacerdotisa chefe), Tata/Mameto Ndenge (pai/mãe pequeno(a)), Kambondo (homens não rodantes), Makota (mulheres não rodantes), entre outros.

 A forma de cultuar, baseada em memória corporal e oralidade, e a maneira de assentar os inquices em tigelas ou sopeiras, têm raízes que podem ser traçadas até práticas ancestrais africanas, como a elaboração de nkisi em cabaças e potes.

A "Segunda Diáspora":

Desafios Atuais e a Busca por "Pureza"

 Apesar de sua rica história de recriação, o Candomblé, incluindo a nação Angola, enfrenta desafios. Uma das grandes preocupações contemporâneas é a "segunda diáspora": a dispersão do povo de terreiro em direção a religiões fundamentalistas. Isso é, em parte, alimentado por uma intolerância interna e por certas visões acadêmicas.

Historicamente, pesquisas com um olhar eurocêntrico priorizaram o estudo de casas da nação Ketu (Casa Branca do Engenho Velho, Gantois e Opô Afonjá), reforçando uma suposta superioridade dos ritos Yorubás. Essa busca por uma "pureza" e uma identidade "original" levou a um processo de re-africanização, onde termos como "afro-brasileiro" são suprimidos em favor de "religiões de matriz africana", e há a tentativa de modificar a forma de falar, buscando uma "língua mais correta" baseada em gramáticas africanas contemporâneas, muitas vezes formadas a partir da colonização europeia. Essa postura, que descredibiliza as práticas de outros terreiros ou nações baseadas em "certezas" de livros ou visões de "casas tradicionais", enfraquece a religião por dentro.

É crucial que pesquisadores e praticantes do Candomblé adotem uma postura ética, que potencialize a exploração das encruzilhadas culturais, em vez de aprisionar ou desvalorizar a expressão da alteridade do outro. A frase mítica do Candomblé, "que cada um mexe a sua panela como sabe" (ou "como aprendeu"), reflete essa diversidade e a importância de respeitar os fundamentos de cada "panela". Quando a tolerância interna ganha força, a intolerância externa perde.

Em suma, o Candomblé é, fundamentalmente, uma "encruzilhada de etnias", onde cada tribo aprendeu a cultivar o ancestral do outro. É um espaço que aponta para várias direções, papéis e funções que o indivíduo executa para expressar sua alteridade, transcendendo sua subcondição social. As modificações que ocorreram são respostas às necessidades de cada "tribo-terreiro-raiz-nação-encruzilhada", sempre em diálogo com a ancestralidade de cada terreiro. O mais importante é compreender que o Candomblé é a resposta que os afro-brasileiros encontraram, equiparável ao princípio de africanidade: a unidade na diferença através do culto aos ancestrais. É um legado vivo, que continua a se transformar e a resistir, celebrando a diversidade em sua essência.


ESCUTE O AUDIO QUE ABORDA O ASSUNTO.