Abicus:
Nascidos para Morrer, Destinados a Viver no Candomblé
No universo complexo e profundo do Candomblé, existem conceitos que desafiam a compreensão ocidental da vida e da morte. Um desses conceitos é o dos Abicus (ou Abiku), seres que, por sua própria natureza e um pacto feito antes do nascimento, parecem ter um destino predeterminado de retornar cedo ao mundo espiritual. No entanto, o Candomblé oferece um caminho notável para que esses indivíduos revertam sua sina e cumpram um "verdadeiro destino" no aiê (mundo terreno).
Quem são os Abicus? Um Pacto no Orum
Para os iorubás, os Abicus são crianças que combinam, antes do seu nascimento, o momento certo de retornarem ao orum (mundo espiritual). Embora a morte seja uma certeza para todos, seu momento é geralmente desconhecido. Contudo, para a sociedade dos Abicus – o egbé orun – o retorno é desejado e programado para que possam retomar ao seio desta sociedade o mais rápido possível. É importante notar que essa não é uma forma de castigar seus pais, mas sim de retornar ao convívio de seus companheiros. De fato, essas crianças não têm a menor intenção de viver muito tempo no aiê.
É crucial compreender que o Abicu não é um ser maligno. Pelo contrário, ele é descrito como uma criança teimosa e instável, com um desejo firmado e próprio, que insiste em se manter em constante viagem entre o orum e o aiê. Devido a essa natureza, o Abicu pode parecer cercado por um "espectro negro", que na verdade são seus companheiros do egbé orun que se aglutinam ao seu redor, desestabilizando sua vivência no aiê.
Como um Abicu é Descoberto?
A identificação de um Abicu não é feita de forma superficial. Uma pessoa só é descoberta como Abicu através dos oráculos. Este é o primeiro passo crucial para que as intervenções do Candomblé possam ser realizadas, visando proteger a criança e garantir sua permanência no mundo terreno.
A Reversão do Destino: O Papel Fundamental do Candomblé
Uma vez que a condição de Abicu é revelada, o Candomblé entra em ação para mudar o destino programado de retorno precoce ao orum. O objetivo é que as crianças Abicus se tornem adultas e gostem de viver no aiê, cumprindo assim o seu verdadeiro destino. Afinal, a morte precoce de filhos antes dos pais ou netos antes dos avós é considerada um "contrasenso biológico", indo "na contramão da natureza".
Os cuidados e processos no Candomblé são abrangentes e específicos:
-
Apoio Divino de Oiá e Xangô: Por serem crianças, mesmo que teimosas e instáveis, os Abicus contam com todo o cuidado e o apoio de Oiá e de Xangô. Esta proteção divina é um pilar fundamental em sua jornada.
-
Intervenções Litúrgicas para a Permanência: O Candomblé oferece diversos processos litúrgicos que ajudam a impedir sua morte precoce. A intenção primordial dessas liturgias, que podem incluir liturgias especiais e ebós, é fazer com que o Abicu permaneça no aiê, "sem nenhuma brecha para que possa retomar instantaneamente ao orum".
-
Iniciação Diferenciada e Proteção Específica: Uma das intervenções mais significativas é a feitura (iniciação) no Candomblé, que muitas vezes se torna uma necessidade imediata. No entanto, a iniciação do Abicu é produzida de forma muito diferenciada das demais.
- Após a realização de variadas liturgias, uma divindade que venha através dos "caminhos" do seu Odú tomará conta do seu orí, e ele se tornará um iniciado como os demais do Candomblé.
- A diferença mais marcante, e um cuidado crucial, é que a pessoa Abicu não poderá ter sua cabeça raspada. A raspagem da cabeça, que no Candomblé simboliza um renascimento e a quebra de barreiras entre os dois níveis da existência humana, poderia relembrá-lo dos votos feitos à sua sociedade no orum no momento do seu nascimento. Se a raspagem ocorresse, seria muito mais fácil que seus companheiros do egbé orun tivessem livre acesso a ele, e sua morte então poderia ser imediata.
- Com a iniciação feita adequadamente por um sacerdote habilitado, essa tênue delimitação entre os Abicus e seus companheiros do orum se reforça e se extinguirá, oferecendo-lhe proteção e estabilidade no aiê.
Um Ser Especial e Mal Compreendido
Os Abicus são pessoas especiais, existindo em número muito reduzido – talvez apenas um em cada grupo de 100 pessoas. Por absoluta falta de conhecimento, são frequentemente tratados de forma pejorativa ou com certo temor por outras pessoas. O Candomblé, com sua sabedoria ancestral e práticas litúrgicas, oferece a esses seres únicos a possibilidade de viverem plenamente no aiê.
Em suma, a relação entre os Abicus e a hierarquia divina do Candomblé é de profunda proteção e intervenção. O Candomblé, com o apoio de Orixás como Oiá e Xangô, atua como um guardião, revertendo o destino inicial de retorno precoce e permitindo que essas crianças teimosas e especiais descubram e vivam seu verdadeiro propósito no mundo terreno.

0 Comentários