Casa Branca:
O Terreiro que Redefiniu o Patrimônio Cultural Negro no Brasil
O Terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká, popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, Bahia, não é apenas um espaço sagrado do candomblé; ele é um marco fundamental na história do patrimônio cultural brasileiro. Reconhecido em 1986, foi o primeiro monumento negro do país a ser tombado, uma conquista que mudou drasticamente a forma como o Brasil enxergava e valorizava sua própria história e suas raízes africanas.
Uma História Centenária de Fé e Resistência
Considerado o terreiro de candomblé mais antigo do Brasil ainda em funcionamento, a Casa Branca foi fundada por volta de 1830. Suas origens remontam à Barroquinha, no centro de Salvador, onde foi estabelecido por três africanas da nação Nagô: Iá Nassô (uma sacerdotisa de Xangô que já possuía este título honorífico e religioso desde a África e era escrava alforriada), Adetá (Iyá Detá) e Iyá Kalá, juntamente com os babalawos Assiká e Bangboshê Obitikô. O nome ritualístico do terreiro, Ilê Axé Iyá Nassô Oká, significa "casa de mãe Nassô" em iorubá, em homenagem à sua fundadora.
A Casa Branca é um exemplar típico do modelo jeje-nagô e aclamada como a matriz da nação Nagô no Brasil. Uma de suas características distintivas é sua linhagem matriarcal, onde a liderança da casa é sempre exercida por uma mulher, por imposição do orixá Xangô.
Historicamente, devido à forte repressão às manifestações religiosas afro-brasileiras, que se intensificou após eventos como a Revolta dos Malês (1835) e a proibição das religiões de matriz africana em 1890, o terreiro foi forçado a se transferir para sua localização atual no Engenho Velho da Federação, um subúrbio de Salvador, onde permanece há mais de 100 anos.
Da Casa Branca, surgiram ou foram influenciados dois dos mais importantes terreiros de candomblé do Brasil: o Terreiro do Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá. Sua influência se estendeu, impactando a religiosidade por todo o Brasil, com ramificações no Rio de Janeiro, São Paulo e até Pernambuco. A importância da Casa Branca é tão vasta que recebe visitantes de todo o Brasil e do exterior, incluindo um legado do Papa e um grupo de luteranos da Noruega.
A Luta pelo Tombamento: Um Paradigma Inovador
Apesar de sua profundidade histórica e espiritual, a Casa Branca enfrentou constantes ameaças urbanísticas e econômicas. Em 1970, parte de seu terreno foi perdida para a construção de um posto de gasolina. Em 1976, após um decreto estadual que cessou a perseguição policial ao candomblé na Bahia, iniciou-se um movimento contra as invasões ao terreno.
A ameaça mais grave veio em 1983, quando o proprietário da área total ocupada pelo terreiro planejava construir um conjunto habitacional, colocando em risco a existência do próprio terreiro. Diante dessa conjuntura, surgiu uma ideia inédita: proteger o terreiro através do tombamento, livrando-o da lógica mercadológica e da especulação imobiliária.
A Associação São Jorge do Engenho Velho, representante legal do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, através de seu presidente, o Ogan Elemaxó Antônio Agnelo Pereira, formalmente solicitou o tombamento em 1983. A decisão de tombamento foi tomada em maio de 1984 pelo Conselho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e homologada em 27 de junho de 1986 pelo então Ministro da Cultura, Celso Monteiro Furtado.
O tombamento abrangeu uma área de 6.800 metros quadrados, incluindo edificações, árvores sagradas e seus principais objetos ritualísticos.
Um Divisor de Águas para o Patrimônio Brasileiro
O reconhecimento da Casa Branca como patrimônio foi inédito e transformador. O Terreiro se tornou o primeiro monumento negro do país a ser protegido pelo IPHAN. Este ato marcou uma mudança fundamental na concepção de patrimônio nacional, que até então priorizava a arquitetura colonial luso-brasileira. Abriu-se, assim, um caminho para o reconhecimento da imensa importância da cultura africana na formação simbólica e imaginária brasileira.
Essa conquista seminal levou ao tombamento de mais 11 terreiros de candomblé no Brasil e à criação de outros mecanismos de proteção para territórios negros. Para o Ogan Serra, professor aposentado da UFBA, o tombamento da Casa Branca "mudou a concepção de patrimônio no país, antes... nem sequer se usava a expressão monumento negro nem patrimônio cultural negro".
Desafios Atuais: A Luta Continua Contra o Racismo e o Descaso
Apesar do tombamento, a Casa Branca continua a enfrentar ameaças constantes devido à dinâmica urbana e aos interesses econômicos. Atualmente, a principal ameaça é uma construção irregular de cinco pavimentos adjacente ao templo de Obaluaiê, dentro do terreiro. Essa obra é ilegal, não possui licenças, alvarás, laudos, nem assinatura de profissionais, e viola tanto a legislação federal (tombamento do IPHAN) quanto a municipal (área de Preservação Cultural e Paisagística).
As denúncias da Casa Branca sobre irregularidades no seu entorno remontam a 2000, e sobre esta construção específica, a 2019. A advogada Isaura Genoveva, da Casa Branca, denuncia que o descaso, a morosidade e a falta de fiscalização eficaz por parte do poder público são "um desdobramento do racismo". Ela argumenta que uma construção irregular como essa não avançaria em uma área nobre de Salvador, evidenciando o racismo ambiental sofrido por comunidades negras. Além de invadir o território tombado, a construção representa um risco iminente de desabamento para o terreiro e as casas vizinhas.
O impasse sobre a responsabilidade da demolição (município ou IPHAN, ambos alegando falta de recursos) é um reflexo do "desinteresse de agir" do Estado. Para os líderes da Casa Branca, um ataque a este terreiro é um ataque a todos os afrodescendentes e a todos os territórios negros no Brasil, tornando-os vulneráveis.
O Futuro da Preservação e a Mobilização Necessária
A Casa Branca e outras comunidades tradicionais de terreiros necessitam de políticas públicas específicas que atendam às suas demandas, como imunidade tributária e tarifas de água e luz mais baratas. Há uma necessidade urgente de diálogo mais fluido e eficaz com o poder público, que muitas vezes só responde sob pressão da mídia.
A luta pela preservação do Terreiro da Casa Branca é contínua e exige mobilização. A comunidade e seus apoiadores estão conclamando a sociedade, ativistas e outras comunidades religiosas a "bombardear" as autoridades (Prefeitura de Salvador, Ministério Público Estadual e Federal, IPHAN, IPAC, Fundação Gregório de Matos) exigindo o cumprimento da lei e a demolição da construção irregular.
Em um esforço para fortalecer a luta, a Casa Branca está lançando o curso "Mulheres de Axé", para capacitar mulheres de comunidades tradicionais a ocupar espaços e entender seus direitos, combatendo o racismo e a desigualdade.
O Terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká, ou Casa Branca do Engenho Velho, transcende a função de um mero templo religioso. É um marco histórico, cultural e espiritual inestimável, um símbolo da resistência e da riqueza da cultura afro-brasileira. A proteção e salvaguarda de seu território não são apenas uma questão legal, mas um imperativo moral para garantir que o contínuo civilizatório africano continue a florescer e a enriquecer a tapeçaria cultural do Brasil. A luta pela Casa Branca é, em essência, a luta pelo reconhecimento e respeito à história e aos direitos de todo o povo negro no país.
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