o Ipade


Ipadê:

 O Ritual Sagrado que Apazigua as Forças Divinas e Ancestrais no Candomblé

 No coração do Candomblé, em especial nas casas de tradição iorubá, existe um ritual de profunda importância e reverência: o Ipadê (Ìpadè). Este cerimonial não é apenas uma sequência de ações, mas um momento crucial de reunião e encontro de poderosas forças divinas e ancestrais, com o objetivo primordial de apaziguar as grandes energias sobrenaturais que convergem para o terreiro.


Por que o Ipadê é Realizado? O Apaziguamento da Terra

 O Ipadê está intrinsecamente ligado à vida do terreiro. Ele acontece sempre que ocorre a imolação de animais de quatro patas, um ato sagrado realizado nas grandes festas, quando a própria terra é "alimentada". É um momento de conexão profunda, onde se busca a harmonia entre o mundo visível e o invisível.

 Este ritual é uma homenagem a todos os representantes das ancestralidades feminina e masculina, sejam elas do princípio coletivo ou particularizado. Entre as divindades e forças ancestrais reverenciadas, destacam-se:


  • Iyami Oxorongá e as Iyami-agbás
  • Babá Egum e Babá Oró
  • Ajaguns, Oxôs, Essás e outras forças

É um reconhecimento da interconexão entre os ancestrais, os Orixás e a comunidade.


Exu: O Guardião, Mensageiro e Mediador do Ipadê

 A centralidade do Ipadê reside na figura de Exu, a divindade que controla e preside esta reunião. Sua atuação é multifacetada e essencial para o sucesso do ritual:

  • Mensageiro e Entregador de Oferendas: Exu é o encarregado de entregar as oferendas às divindades. Ele atua como o intermediador fundamental entre as divindades e os seres humanos e vice-versa.
  • Guardião Protetor: Ele zela pela comunidade, resguardando-a das poderosas energias que participam do ritual. As divindades envolvidas são consideradas muito melindrosas e exigem extremo cuidado e respeito em seu tratamento.
  • Produtor de Calmaria: Exu manifesta sua pluralidade neste momento; como Odará, ele é o produtor da calmaria e da paz. Como Ojixebó, é convocado para levar as oferendas. Sua essência de Iná (o fogo), seu elemento mais forte e representante da cor vermelha, também o torna o controlador do movimento e da comunicação durante o Ipadê.
  • Primeiro a Receber: Em sua condição de assiwaju (aquele que vai à frente), Exu é quem primeiramente recebe suas oferendas, para então entregá-las às demais divindades.

A Condução do Ritual: Liderança Feminina e Reverência

 Devido ao seu poder extraordinário e às forças invocadas, o Ipadê possui um certo perigo, exigindo que seja realizado apenas por autoridades religiosas com profundo conhecimento e idade temporal dentro do Candomblé. É uma liturgia quase exclusivamente feminina, sob a responsabilidade das mulheres mais antigas do terreiro e daquelas com cargos específicos, como a iyá kekerê, a iyá tebexé, a dagã, a sidagã, a iyamorô e outras. Toda a comunidade e alguns convidados especiais da matança participam em conjunto.

 A cerimônia da imolação, que precede o Ipadê, ocorre ao amanhecer, antes do nascer do Sol, com temperatura amena, e não é aberta ao público. O Ipadê, por sua vez, começa logo após a imolação, no barracão, antes do início da festa pública, com os ogãs em seus postos.

 Durante o ritual, os filhos da casa demonstram uma profunda submissão e reverência: eles se ajoelham em esteiras, com a testa encostada no chão e o rosto completamente encoberto. É vital que não olhem o que se passa à sua volta, principalmente em respeito a Iyami Oxorongá e suas parceiras.


As Oferendas e Cantigas Sagradas

 No centro do barracão, o cenário é preparado com as oferendas: uma quartinha com água, pratos de barro com alimentos para Exu e para as demais divindades, bebidas, acaçás e uma cuia com substâncias especiais.

 A celebração é acompanhada por cantigas próprias, entoadas pelo/a sacerdote/sacerdotisa ou pela iyá tebexé, e respondidas pela comunidade. Uma vez iniciado o ritual, ninguém pode ausentar-se do barracão até o seu término, com exceção das mulheres que transportam os alimentos ofertados para o exterior.


O Fim do Ipadê: Paz e Início da Celebração

 O Ipadê marca um ponto de virada no dia de festividades. Quando ele termina, as funções da casa de Candomblé podem voltar ao normal, e as festividades podem, finalmente, ter início. Isso ocorre porque Exu e as outras divindades já foram agradadas e apaziguadas, garantindo a harmonia e a proteção para as celebrações que se seguirão.

 Vale ressaltar que o Ipadê também faz parte do cerimonial do Axexê, sendo, neste caso, realizado à noite, exceto no último dia deste ritual, quando é feito ao amanhecer.

 O Ipadê é, portanto, um pilar litúrgico do Candomblé, um ritual que com sua seriedade e profundidade garante o equilíbrio, a proteção e a benção das poderosas forças que regem o universo do terreiro.